Idéias do
educador Paulo Freire adaptadas aos museus podem tornar mais prazeroso o ensino
de História
Denise
C. Stuart[1]
Museus
– e nessa dominação podemos incluir centros culturais, centros de ciência,
jardins zoológicos etc. – são instituições caracterizadas como espaços de
educação não-formal. Isto quer dizer que nesses ambientes, diferentemente do
que acontece dentro das salas de aula, os visitantes não têm a “obrigação” de
aprender algo. Seus conhecimentos não são postos à prova, e eles estão livres
para fazer escolhas de acordo com suas preferências. O tipo de educação que se
associa aos museus é mais participativa e descentralizada e, em certa medida,
selecionada espontaneamente pelo próprio aprendiz, levado pelo interesse e pela
motivação pessoal.
Ao
contrário do que acontece na escola, onde a formação se dá pela frequência
diária às aulas, uma visita ao museu pode ter tempos diferenciados e acontecer
paulatinamente ao longo da vida, em diferentes ocasiões, independentemente de
idade e grau de conhecimento. Além disso, a experiência dos visitantes será
sempre distinta de outras: cada um vai observar, compreender e absorver o que
está exposto ou escrito de maneira diferente. O aprendizado no museu tem,
enfim, um caráter único, sempre condicionado à experiência individual do
visitante e das circunstâncias em que ocorreu a visita, na medida em que as
percepções variam segundo o contexto da visitação.
Após
transformações significativas verificadas ao longo do tempo, o século XXI acena
com dois grandes desafios para os futuros diretores de museus: potencializar o
papel educativo dessas instituições no desenvolvimento da sociedade e enfatizar
seu valor social num mundo cada vez mais globalizado e desigual. Alguns passos
já vêm sendo dados nessa direção. Um deles é a adaptação das idéias de um
educador ilustre, Paulo Freire – inspirada no seu conceito de “palavra
geradora” –, para o ensino de História a partir dos objetos.
Estudos
recentes defendem a noção de que o aprendizado é “um processo de mudança
conceitual”, em vez de “absorção de um conhecimento transmitido”. Assim sendo,
a instituição-museu é o espaço ideal para o desenvolvimento desses processos.
Os museus, sejam eles de artes, ciências, tecnologia ou antropologia, são por
excelência locais de observação, interação e reflexão. Diversas histórias estão
ali prontas para serem narradas: histórias de outras épocas evocando povos e
civilizações antigas, com suas maneiras de viver e pensar; e do mundo
contemporâneo do qual fazemos parte, com suas novas descobertas, formas de
expressão artística, cultural etc. São espaços simbólicos, muitas vezes mágicos
e surpreendentes, capazes de oferecer uma experiência ao mesmo tempo educativa
e divertida.
O
reconhecimento da importância dos museus para a educação não é tão novo assim.
No século XVIII, filósofos e homens de letras, movidos pelo espírito
enciclopedista, conclamavam a necessidade de se colocar as coleções
museológicas “a serviço da educação do povo”, como suporte e objeto de estudo e
difusão dos ideais iluministas. Só pelo conhecimento, diziam eles, a humanidade
poderia libertar o pensamento, expulsando dele os dogmas de fé e as
superstições.
Os
museus seriam um dos instrumentos para a consecução desse projeto. O Estado
deveria ser, na visão dos enciclopedistas, o “tutor” de todo o patrimônio
relacionado à “história nacional” e à “instrução”. No século XIX, os museus
iriam ter participação ativa no movimento educacional: passariam a ser
reconhecidos como “agentes” do aprendizado, juntamente com as universidades e
sociedades acadêmicas.
A
educação era vista então como um signo da modernidade; daí a valorização de
certos grupos sociais, como os dos cientistas e artistas. Contudo, apesar da
proposta de os museus servirem ao “povo”, apenas alguns estratos seletos iriam
usufruir das instituições museológicas no período. De fato, até a primeira
década do século XX, os museus de arte, por exemplo, não se empenhariam na
democratização das exposições que promoviam. Como observou Maria Esther
Valente, “o acesso do grande público só ocorria aos domingos e, por vezes, num
dia na semana (...). Na realidade, a função social da instituição foi a de
integrar a burguesia que aspirava alcançar a aristocracia”.
Ao
longo do século XX ocorrem mudanças significativas no conceito e nos objetivos
dos museus, dando origem a novas formas de comunicação entre eles e a
sociedade. Tradicionalmente voltados para as coleções, passaram a dialogar com
um público mais amplo e diversificado, ao mesmo tempo em que buscaram
estabelecer uma relação mais estreita com as comunidades locais. Vale ressaltar
que, a partir da década de 1960, a concepção educativa das exposições em
museus, principalmente os de ciência, foi muito influenciada pelas teorias
educacionais em vigor; em especial pelas teorias construtivistas, que enfatizam
o papel ativo do indivíduo na construção de seu próprio aprendizado, visto como
um processo dinâmico que requer uma interação constante entre ele e o ambiente. As idéias do educador
Jean Piaget (1896-1980) sobre desenvolvimento cognitivo, de Howard Gardner sobre múltiplas inteligências, e de Paulo
Freire (1921-1997) sobre a importância do diálogo no processo educativo
influenciaram, e continuam influenciando, as abordagens educativas em museus. O
pensamento de Freire – autor de Pedagogia do oprimido e muitos outros livros –
é especialmente importante para nós, brasileiros, devido à ênfase no papel da
educação para a cidadania. As correntes mais recentes da Museologia enfatizam
justamente a importância social do museu como instrumento para a inclusão
social e cultural, capaz de formar indivíduos criativos que possam – ao ampliar
sua visão de mundo pelo contato com os recursos que a instituição oferece –
exercer sua consciência crítica em relação a si mesmos e à sociedade em que se
inserem.
Alguns
valores essenciais que dizem respeito aos museus estão na base do ensinamento
freiriano. A idéia de “museu-fórum”, local aberto, livre de discriminações,
atento às necessidades do seu público usuário, está em consonância com o
pensamento do educador sobre a importância do diálogo e do respeito no processo
educativo. Estes preceitos pretendem transformar educadores e educandos,
garantindo-lhes o direito à autonomia pessoal na construção de uma sociedade democrática,
que a todos respeita e dignifica. Entre os princípios básicos apregoados por
Freire estão a ética, o respeito pelos saberes do educando e o reconhecimento
de sua identidade cultural, a rejeição a toda e qualquer forma de
discriminação, a reflexão crítica da prática pedagógica, o saber dialogar e
escutar; o ser curioso e alegre no ato de educar.
Freire
se reporta constantemente à importância da cultura como invenção do homem, à
autonomia de poder escrever sua própria história. Pelo dom de conhecer, o ser
humano constrói sentidos, significações e símbolos. O modo como o indivíduo
capta e interpreta a realidade vai determinar sua relação com o mundo na sua
pluralidade de significados. É na cultura que o sujeito vai encontrar os
primeiros elementos para a consolidação de discernimentos e, neste sentido, os
museus podem exercer um papel importante ao oferecer aos seus
visitantes/usuários a possibilidade de construir novos entendimentos sobre a
sua própria cultura e também sobre a de outros povos.
Um dos
exemplos atuais da aplicação das idéias de Freire aos museus, no caso aos
museus de história, é a metodologia do “objeto gerador” – transfiguração do
conceito de “palavra geradora” de que falava o educador –, definida e levada à
prática pelo historiador Francisco Régis Lopes Ramos, diretor do Museu do
Ceará. O trabalho com o “objeto
gerador” envolve exercícios que enfocam a experiência cotidiana do visitante do
museu, na perspectiva de uma “pedagogia da provocação”: a partir do vivenciado,
gera-se um “debate de situações-problemas”. Ramos relata que, quando há
comparações entre objetos do passado e do presente, a noção de historicidade –
qualidade ou condição do que é histórico – começa a ser trabalhada de modo mais
direto.
O
desafio dessa metodologia de aprendizagem no museu é conseguir usar a
sensibilidade e a provocação como matérias-primas para novas percepções. Para
tanto, as exposições devem ser capazes de estimular o interesse e a curiosidade
do visitante por meio da emoção. Na metodologia da “palavra geradora”, Freire
parte de uma situação familiar relacionada à realidade do educando para o
entendimento do mundo. Na abordagem do “objeto gerador” – utilizado para o
ensino de História –, também é necessário iniciar o contato e o diálogo pela
experiência pessoal do visitante, por meio de objetos do seu uso cotidiano,
para então discutir objetos de outras culturas e épocas. Para
problematizar uma questão no contexto do museu, é fundamental que a exposição –
e também os profissionais encarregados da mediação, como guias e professores,
entre outros – seja capaz de relacionar os temas e objetos nela contidos a
situações, experiências e objetos familiares aos visitantes. Aprender em museus deve ser
uma experiência espontânea e, portanto, prazerosa. Visitar instituições
museológicas é um hábito a ser cultivado, se possível desde cedo, pois estes
locais estimulam a curiosidade e o desejo de conhecimento. Não existe uma
maneira preconcebida de se visitar um museu: cada pessoa deve usar a
criatividade e criar sua própria relação com estes espaços plenos de História e
histórias. Ao ampliarmos nossa visão de mundo, aprendemos a apreciar e
respeitar outros povos e culturas.
FONTE:
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/educacao/museus-emocao-e-aprendizagem,
acessado em 17/02/2015
[1]
DENISE
C. STUDART é coordenadora do
núcleo de estudos de público e avaliação do Museu da Vida, da Fundação Oswaldo
Cruz (RJ).
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